domingo, 17 de outubro de 2010

Aparição Amorosa

Doce fantasma, porque me visitas
como em outros tempos nossos corpos se visitavam?
Tua transparência roça-me  a pele, convida
a refazermos carícias impraticáveis: ninguém nunca
um beijo recebeu de rosto consumido.

Mas insistes, doçura. Ouço-te a voz,
mesma voz, mesmo timbre,
mesmas leves sílabas,
e aquele mesmo longo arquejo,
em que te esvaías de prazer,
e nosso final descanso de camurça.

Então, convicto,
ouço teu nome, unica parte de ti que não se dissolve
e continua existindo, puro som
Aperto... o que? a massa de ar em que te converteste
e beijo, beijo intensamente nada.

Amado ser destruído, por que voltas
e és tão real assim tão ilusório?
Já nem distingo mais se és sombra
ou sombra sempre foste, e nossa história
invenção de livro soletrado
sob pestanas sonolentas.
Terei um dia conhecido
teu vero corpo como hoje eu o sei
de enlaçar o vapor como se enlaça
uma idéia platônica no espaço.

O desejo perdura em ti que já não és,
querida ausente, a perseguir-me, suave?
Nunca pensei que os mortos
o mesmo ardor tivessem de outros dias
e no-lo transmitissem com chupadas
de fogo acesso e gelo matizados

Tua visita ardente me consola.
Tua visita ardente me desola.
Tua visita, apenas uma esmola.

- Carlos Drummond de Andrade

Um comentário:

  1. "Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida". (Clarice Lispector)

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